No começo de Decameron, encontramos o apelo de Pampinea, no sentido de fugirem à peste e à morte física e moral que se vive em Florença, «un mondo alla rovescia».1
Na Introdução à 1ª novela,
Pampinea, no seu discurso, faz alusão ao deleite e ao prazer que podem
encontrar fora do caos da cidade, «E lembrem-se de que é mais conveniente ir
embora com decência» (p.24). Alerta também para as questões relacionadas com o
decoro, «(…) fugindo da morte aos exemplos indecorosos (…), fôssemos
decorosamente para as propriedades do campo (…); e ali gozássemos da festa, da
alegria e do prazer (…), sem ultrapassar (…) os limites da razão.», 2
Podemos encontrar o mesmo assunto
no discurso de Pamfilo, na conclusão da 10ª novela da 10ª jornada, «(…) amanhã
faz quinze dias que saímos de Florença para termos alguma distração que nos
servisse de amparo à saúde e à vida (…)». 3 Na harmonia entre estes
dois discursos, que se completam, observa-se a circularidade da obra. Não só a
brigata regressa ao ponto de partida, a Igreja de Santa Maria Novella, como
demonstra ter conseguido concretizar o projeto a que se tinha proposto. Baseando-se
nos valores da virtude, do respeito, da fraternidade e no crescimento moral e
intelectual, os jovens formaram, a partir da sua micro comunidade, um novo
modelo social.
Nas Introduções e conclusões das
novelas que cada um irá contar, há sempre reações verbais dos jovens da brigata,
que manifestam os diferentes pontos de vista da brigata. Desde a sensatez de
Filomena, que apela à prudência, «somos volúveis e medrosas», ou Elisa, «não
sejamos seguidas por contrariedades e escândalos» ou ainda de Neifile,
«levando-os connosco, possamos incorrer em infâmia e desaprovação», Dioneu
contrapõe dizendo que «(…) foi a sensatez, mais a nossa astúcia que nos trouxe
aqui». Reações, que levam por vezes a que as meninas corem, ou que todos riam,
quando o tema das novelas é o erotismo, «todas as delícias do mundo são uma
bobagem em comparação com a delícia que é a mulher estar com o homem». 4
Diz Asor Rosa, quanto à temática do Eros, que «nenhuma lei pode interferir num
amor prazeroso, (…) O amor tratado como um fator determinante da vida, (…) as
forças e os impulsos naturais (…) camuflado de virtude e fortuna». Também o
final trágico do amor infeliz de Guiscardo e Guismunda, 5 os
emociona «A história contada por Fiammetta mais de uma vez arrancara lágrimas
dos olhos de suas companheiras (…)» ou a história do burlão e sacrílego
Ciappelletto 6, os diverte, «A novela de Pânfilo foi em parte
acolhida com risos e no todo elogiada pelas mulheres; foi atentamente ouvida (…)».
Segundo Ferroni, no Decameron há um «percurso ascensional que vai do vício
dominante, da 1ª novela, com Ciappelletto, à virtude dominante da última, com
Griselda, apoteose da donna-madre» .
Podemos concluir, que do início
ao final das 100 novelas, não há uma ligação entre o que os jovens ouviam
contar e o que faziam, o que confirma o caráter exemplar da brigata, como se
pode verificar nas palavras de Pamfilo, na última jornada de Decameron«; (…)
coisa que (…) segundo o meu juízo, fizemos com honradez, (…) embora tenham sido
contadas histórias alegres e talvez capazes de despertar a concupiscência, (…)
não chegaram ao meu conhecimento (…) nada que fosse censurável, (…) contínuo
decoro, contínua concórdia, contínua familiaridade fraterna.
Bibliografia
G. Boccaccio, Decameron: Tradução de Ivone Benedetti
Ferroni, Giulio, Storia della literatura
Italiana
Rosa Alberto Asor, Boccaccio, Decameron
Notas
1Ferroni, 2.5.9
2Decameron, p.23
3Decameron. P.528
41ª Novela da 3ª
Jornada
52ª Novela da 4ª
Jornada. p, 203
62ª Novela 1ª Jornada
p. 37
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