O conto Da minha janela foi primeiramente publicado no livro solidário “pedaços de… nós ”
Da minha janela
Era
como um ritual inconsciente, mas que me alimentava a alma.
Eu
gostava do que via, era uma arquitetura barroca e soberba; contudo, remexia com
os meus sentimentos, um misto de vazio, medo, luxúria que despertava em mim uma
curiosidade inabalável. Daquele sítio eu conseguia ver várias clarabóias onde
incidiam os raios de sol. Havia um pequeno varandim de ferro. Viam-se ainda
arcos e pequenos bancos, e um piano, arpas e corredores que se ligavam entre
si. Ao redor do monumento a natureza tinha abusado da beleza, com árvores
gigantescas que serviam de casa às mais diversas espécies de aves e em dias de
calor serviam de sombra a quem ali passeava. A esta beleza a mão do homem
juntou e harmonizou, com bancos de pedra, repuxos no meio dos lagos e jardins
muito cuidados. Havia ainda um parque infantil que fazia a delícia dos mais
novos.
Da
minha janela
Aos
domingos e feriados religiosos eu podia ver rituais de fé assistidos por uma
hierarquia religiosa, mas que nem todos viviam com a mesma crença. Havia ali
algo entre as noviças, havia uma de semblante triste, deixava transparecer dor,
que eu queria entender. E, aos poucos, fui captando a motivação através dos
olhares, da postura da tristeza, da atitude das mais novas. Não podendo entrar
naquele sítio para perceber o que ali se passava, dei por mim a imaginar uma
pequena história que agora vos vou contar.
Da
minha janela
Felisberta,
uma noviça com pouco mais de vinte anos, tinha o sonho de servir a Deus.
Pele
clara, sobressaía um olhar meigo e quente, cabelo encaracolado num castanho
brilhante que coincidia com o seu olhar.
Usava
uma camisa roxa com uma saia aos quadrados. Nunca se esquecia de pôr o seu
crucifixo ao pescoço. Tinha entrado para servir a Deus por sua grande vontade.
Quanto
à noviça Teresa, sentia-se revoltada pois não estava ali por vontade própria.
Tinham sido os pais a decidirem a sua vida; mas quis o destino que a noviça se
tivesse apaixonado. Um amor lindo, correspondido, mas que os pais não queriam.
Meteram-na no convento, na esperança de fazer dela uma freira e de a desviar do
seu grande amor. Teresa usava uma camisa branca com uma saia às pregas e um
crucifixo ao pescoço. Tinha cabelo liso, castanho e curto, olhos pequenos,
nariz fino e uns lábios carnudos.
Apesar
da dor, a noviça era de uma extrema educação e passividade. Da sua boca não
saia agressividade nas palavras. Mostrava, assim, um coração puro.
Era
na penumbra da noite que tudo parecia ainda mais cruel, as lágrimas mais pareciam
pedaços de Coração despedaçado. Junto ao candeeiro escrevia cartas de amor para
o seu querido. Amor proibido, mas que ela fazia questão de deixar imortalizadas
no papel.
Ao
final da tarde, como um ritual religioso, o seu amado sentava-se no banco
virado para o monumento. Prostrado, triste, com um olhar fixo, ficava horas a
olhar para as janelas, como quem espera um milagre divino.
O
amor do jovem era tão genuíno e puro que, sem saber como, pois nunca o tinha
feito, acabava por orar a Deus, pedindo-lhe que mudasse o destino e que a sua
musa pudesse cair-lhe nos braços, que pudessem amar, ter uma família.
“Misericórdia Deus”.
O
relacionamento entre as noviças Felisberta e Teresa era de muito respeito, e
era preciso tempo para se conquistarem uma à outra.
A
amizade crescia entre ambas e, com o passar dos dias, Felisberta começava a
perceber que Teresa não estava bem.
Sentia-a
triste, abatida e desmotivada, apesar de cumpridora das suas tarefas.
Felisberta queria conquistar a confiança de Teresa, pois sabia que a sua amiga
não estava bem.
Certa
noite, e já desconfiada que Teresa ficava muito tempo acordada, resolveu
surpreendê-la e, sem pensar duas vezes, entrou com uma chávena de chá na mão
pelo quarto de Teresa e viu o seu rosto coberto de lágrimas, enquanto nas suas
mãos trémulas segurava a caneta e preparava-se para escrever para o seu
amor.
Felisberta,
calmamente, rodeou a amiga com um forte abraço e murmurou ao ouvido “confia em
mim” e foi isso que Teresa fez. Mais calma, contou-lhe a sua história de amor.
(Tinha
conhecido o seu grande amor na vila quando, pela altura das festas do Santo
padroeiro, o circo chegou. Era um jovem trapezista musculado, de cabelo louro,
com um olhar profundo que, ao cruzar-se com o seu, fê-la suspirar e sorrir como
já se conhecessem desde sempre. Os dias seguintes foram de encontros e de
trocas de promessas de amor.)
Teresa
estava apaixonada e tudo ao seu redor era mais cintilante, até que teve de
transmiti-lo aos pais; e foi aí que a sua vida desabou, pois não teve permissão
para namorar teve de contar, ainda, com a repulsa dos progenitores, por se ter
apaixonado por um “Zé ninguém”, um saltimbanco sem eira nem beira.
E
daí até a meterem fechada num convento foi um ápice.
Felisberta
ficou pensativa e triste pela amiga. Não era possível alguém ser tão penalizada
por amar. Todos no convento perceberam que aquela noviça não estava feliz e,
entre murmúrios e conversas mais cúmplices, acabaram por compreender que tinham
de fazer algo para ajudar a jovem. Muitas foram as ideias para ajudar Teresa,
mas nenhuma era brilhante.
Ficou
dias a pensar como ajudar a amiga e, sim, tinha de contar à Madre, pessoa de
princípios, de semblante sereno, muito reta nas suas decisões, ela era
uma boa ouvinte e sempre com uma palavra de coragem e fé, que enchia os outros
de esperança. Tinha um ar castiço, era pequena e gorducha. Andava com o cabelo
tapado pelo lenço do hábito que envergava. Ao contar à Madre o que Teresa
estava a sentir, esta sentou-se e, pensativa, reviveu a sua juventude, quando
também se tinha apaixonado por um rapazola giro e simpático, mas, no seu caso,
o amor e a convicção que tinha em servir a Deus era mais forte.
Sensível ao que se estava a passar,
decidiu que iria conversar com a noviça, para perceber melhor e, se possível,
interceder a seu favor.
No decorrer da conversa a jovem
conseguiu conquistar o coração da Madre com a sua sabedoria divina. Porque até
Deus tinha colocado as palavras certas na sua boca. A velha senhora, com muitos
anos de conhecimento, viu que a pequena estava em sofrimento e que a sua
vocação não era, de todo, ser freira. Além de que não via o porquê de os pais
não aceitarem tão grande amor: “Não te preocupes minha querida, tudo tem
solução.”
Da minha janela
Aquele dia era diferente, era um dia de
decisões, difíceis para ambas as partes, o que havia em comum eram paixões
antagónicas. Teresa apaixonada pelo seu amado e os pais apaixonados pela filha,
pelo seu bem e o seu futuro.
Contudo, a conversa com a Madre, cujas
investidas eram cada vez mais regulares, deixou os pais apreensivos, estavam
desorientados; pensavam que estavam a fazer o melhor para filha, o medo de ela
partir para viver a sua paixão com o artista de circo deixava-os com o coração
a sangrar.
Não era essa a vida que os pais tinham
um dia sonhado para a sua menina, fugia aos padrões ditos “normais” e aceites
na família e na vila onde viviam. O falatório multiplicava-se sobre a conduta
da menina, agora enclausurada e doente.
A decisão tinha que ser tomada, o amor
que tinham pela filha entrava agora num reboliço de conflito do que é certo ou
errado.
O amor que ela sentia pelo jovem do
circo não tirava a sua fé, e a obrigação que a família lhe impunha não a fazia
esquecer o seu grande amor.
Da minha janela
A manhã estava sombria, as árvores
faziam um ruído melancólico, próprio de um dia de chuva miudinha, aquela que o
ditado diz “molha tolos quando eu estou em casa”.
Poucas pessoas se viam; só mesmo aquelas
que tinham a responsabilidade de chegar a horas aos empregos.
A porta do “meu monumento” abriu-se,
coisa que não era habitual, pelo menos tão cedo.
A Madre, ao ver o tempo frio, arranjou
melhor o seu casaco de malha e, em passo apressado, lá se dirigiu para o seu
encontro misterioso. Chegou ao destino; este encontro, apesar de estranho,
tinha de ser feito.
A Madre queria conhecer o amor de
Teresa, de seu nome Lourenço, queria olhar-lhe nos olhos e ver o mesmo brilho
que via nos olhos de Teresa, quando esta falava no amor que tinha por
ele.
O acampamento parou, todos estavam
admirados com a presença da Madre, mas Lourenço percebeu logo que algo se tinha
passado.
Um medo invadiu-lhe o coração, será que
a sua amada estava bem? Ficou doente? Onde estaria, foram perguntas repentinas
feitas de joelhos em frente à Madre.
“A minha Teresa, por favor diga-me que
está bem”.
A atitude tão genuína do rapaz deixava a
Madre tranquila, pouco mais precisava de ver, e até o discurso que tinha
ensaiado durante a noite ia por água abaixo. Resolveu tranquilizá-lo em relação
ao estado de saúde da Teresa que, apesar de frágil e triste, não padecia de
nenhuma doença carnal.
No acampamento todos estavam prostrados
diante a postura da Madre, também eles queriam saber como podiam ajudar, agora
compreendiam melhor a falta de motivação de Lourenço, mesmo em relação ao seu
desempenho no circo.
Da minha janela
Decidida a mudar o futuro dos jovens, a
Madre foi a casa dos pais. Recebida com carinho e até algumas mordomias, os
pais prepararam um lanche com o melhor que tinham. Não eram abastados, mas
viviam confortavelmente.
Falou muito direta e sem meias palavras,
mas com o cuidado de não os ferir, pois sabia que Teresa era o bem mais
precioso que tinham, que por ela iam até ao fim do mundo.
Voltou a declarar o sofrimento e mostrou
o seu desagrado quanto à decisão que tinham tomado.
Falou das boas intenções do jovem
trapezista e de como estava também a sofrer.
Da minha janela
O dia acordava devagar, com uma calma
inigualável, o azul do céu era um manto que cobria a terra.
As árvores nem sequer abanavam, eu
apenas ouvia os pássaros e as gargalhadas das crianças diziam-me que havia
gente na terra.
Era dia especial, um dia de decisões, a
grande reunião com os pais. Todos estavam nervosos mas todos queriam o bem dos
jovens, o que tornava tudo mais fácil. Numa sala soalheira, onde o andar das
pessoas chiava no soalho de madeira, uma mesa maciça e cadeiras
imperiais.
As janelas eram esguias e altas, com
reposteiro de flores, e um grande crucifixo na parede contrastava com coleções
intermináveis de livros religiosos.
A Madre e a Teresa foram as primeiras a
chegar. A religiosa-mor mantinha-se calma, com um semblante sereno e transmitia
a Teresa segurança, apesar de esta estar muito nervosa, as pernas tremiam e não
sabia muito bem o que fazer com as mãos, ora as apoiava na mesa, ora as traçava
ou as levantava aos céus. A barriga doía-lhe e, por vezes, sentia o suor
a escorrer pela cara. Mas a ansiedade
não impedia que estivesse segura daquilo que queria, tinha um discurso ensaiado
mas o queixo tremia, ela achava mesmo que iria ser atraiçoada pelos
nervos.
Segurou com força a caneca de chá que
Felisberta tinha feito com muito carinho; mal tinha dado o primeiro gole quando
os pais entraram pela sala.
O pai vinha com uma atitude mais calma,
que transmitia alguma flexibilidade, porém, sem dizer uma palavra, mantinha as
mãos nos bolsos das calças e olhar no chão.
A mãe dava-lhe o braço esquerdo, como
sinal de apoio. Tinha um vestido de cetim às flores e, de mala enfiada no outro
braço, esboçava um leve sorriso.
O último a chegar foi o Lourenço. Tremia
tanto que quase se confundia com um terramoto.
O silêncio na sala era insuportável,
trocavam olhares entre si, sem que ninguém conseguisse quebrar o gelo.
Foi então que Teresa se levantou e, em
passos lentos, abraçou os pais. Uma mão na cintura da mãe e outra no pai, ambos
a beijavam carinhosamente na cabeça e acariciavam-na.
Nos olhos de todos, o brilho das
lágrimas não passava despercebido.
Teresa, ao afastar-se dos pais, troca
com o seu amado um olhar tão cintilante, de um amor profundo completamente
correspondido.
Naquele olhar estava tudo dito, não eram
precisas palavras. Toda a sala se arrepiou perante a profundidade de tamanho
amor.
A Madre quebrou o gelo, tossiu e pediu à
Felisberta que trouxesse chá e biscoitos. Como ninguém sabia muito bem o que
dizer, a sabedoria da superior, com sensatez, contornou tudo e todos e, muito
subtilmente, foi direta ao assunto.
O pai foi sempre aquele que mantinha a
caneca baixa, a mãe segurava a mão do marido como a dizer lhe “calma, a nossa
filha tem de ser feliz”. O casal apaixonado trocava olhares entre si.
E a Madre falava desalmadamente, não
dando muitas chances de intervenções e, assim, garantia a conversa sem
discussões. A reunião foi toda conduzida pela Madre, de quando em vez
interrompida com a necessidade de serem dadas algumas justificações. No ar
pairava uma resolução, mas que era adiada com o “vou pensar, preciso de tempo”
por parte do pai. Finando a mesma, cada um rumou ao seu destino.
Da minha janela
Os raios de sol entravam pela clarabóia
e vitrais, o som das arpas e do piano e a alegria ao redor do “meu pedaço de
monumento”, hoje, parecia-me diferente. Seria mais uma ficção minha? Na rua, à
sombra das árvores, um grupo de malabaristas fazia as delícias das crianças,
tudo estava animado.
A Madre, as freiras, as noviças estavam
à conversa com o pai e a mãe de Teresa. Algo se passava, tudo reluzia de
felicidade.
Debrucei-me mais um pouco e eis que pela
porta grande Teresa e Lourenço saíam de mãos dadas. Todos estavam comovidos ao
som de palmas e risos, todos queriam abraçar o casal de namorados. O amor venceu!
E eu, da minha janela, onde deixei que o
meu olhar entrasse pela linda e majestosa janela do monumento, imaginei, vivi,
o amor de Teresa e Lourenço.
“Eu amo tudo o que foi,
Tudo o que já não é,
A dor que já me não dói,
A antiga e errónea fé,
O ontem que dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou E hoje é já outro
dia.”
Fernando Pessoa
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