segunda-feira, 10 de outubro de 2022

A questão do livre-arbítrio em William Shakespeare

 Na tragédia clássica o Homem tinha um destino impositivo e inescapável. Por outro lado, a partir do Renascimento, temos uma noção de livre-arbítrio: a capacidade de pensar e agir. Como seria, então, entendida nos séculos XVI-XVII esta capacidade? Em peças como Hamlet ou Rei Lear, entre outras, encontramos debatida esta questão. Irei então analisá-la de uma forma fundamentada.  

 

A peça Hamlet de William Shakespeare pode ser entendida como um tratado sobre a falência do livre-arbítrio, sobre a falência do homem intelectual, do homem racional, um tratado sobre a decadência do mundo às avessas, e da vontade de escolha do Homem. Por mais que Hamlet se questione – e que o mundo se afigure brilhante e infinito -, de nada servem as suas interrogações. A filosofia é clara, não é com a razão que entendemos a realidade, é com um mergulho em nós, na nossa intuição e subjetividade, desconfiando do mundo superficial. O solilóquio ser ou não ser, eis a questão é demonstrativo da falência do livre-arbítrio, pois temos presente a indecisão do príncipe Hamlet perante a situação em evidência, em que pondera entre a resignação ou o enfrentamento da “trágica fortuna”. Contudo, Hamlet acaba por cometer uma tragédia que se traduz no facto de ter assassinado o seu tio. 

 

Em Rei Lear temos a continuação da resposta à questão em desenvolvimento: “Rei de França – É estranho. Aquela que ainda há um instante era vossa preferida, o objecto dos vossos louvores, o bálsamo da vossa idade, a melhor, a mais querida, como pôde ele, num abrir e fecha de olhos, praticar uma acção tão revoltante que a despojou duma tão multiforme afeição? Ou a sua falta foi tão desconforme gravidade que a torna monstruosa, ou o vosso anterior e proclamado amor se tinha desvanecido; e, para acreditá-lo, seria necessária uma fé que, sem milagre a razão nunca me pode fazer acreditar.” (pp. 25-31, O Rei Lear). Atentando ao referido diálogo, e o contexto onde se insere, ficamos com mais um bom exemplo da tese que tentei explicar neste Ensaio.

 

Em suma, Hamlet demonstra a total consciência da incapacidade, sua e de qualquer outro, de mudar o que já fora traçado. Não é só a ideia de destino, tal como o concebiam os gregos, que fica explícita, mas também a segurança de que, tendo cometido um descontrolo, mesmo que em função do erro de outro (Claudius), a sua punição viria, mais cedo ou mais tarde. Outro impedimento para o uso do livre-arbítrio, representando a sua falência, é a condição de Hamlet, um príncipe – que, segundo a minha leitura, é tudo menos um príncipe vingador -, que, como tal, não pode agir pensando somente em si mesmo, porquanto dele depende, no final, o futuro de todo o reino da Dinamarca.     

          



Sem comentários:

Pensamento do Dia

  Álvaro de Campos heterónimo de Fernando Pessoa é uma paródia do futurismo. A seu tempo explicarei a afirmação.