A peça Hamlet de
William Shakespeare pode ser entendida como um tratado sobre a falência do livre-arbítrio,
sobre a falência do homem intelectual, do homem racional, um tratado sobre a
decadência do mundo às avessas, e da vontade de escolha do Homem. Por mais que
Hamlet se questione – e que o mundo se afigure brilhante e infinito -, de nada
servem as suas interrogações. A filosofia é clara, não é com a razão que
entendemos a realidade, é com um mergulho em nós, na nossa intuição e
subjetividade, desconfiando do mundo superficial. O solilóquio ser ou não ser,
eis a questão é demonstrativo da falência do livre-arbítrio, pois temos presente
a indecisão do príncipe Hamlet perante a situação em evidência, em que pondera
entre a resignação ou o enfrentamento da “trágica fortuna”. Contudo, Hamlet
acaba por cometer uma tragédia que se traduz no facto de ter assassinado o seu
tio.
Em Rei Lear temos a
continuação da resposta à questão em desenvolvimento: “Rei de França – É
estranho. Aquela que ainda há um instante era vossa preferida, o objecto dos
vossos louvores, o bálsamo da vossa idade, a melhor, a mais querida, como pôde
ele, num abrir e fecha de olhos, praticar uma acção tão revoltante que a
despojou duma tão multiforme afeição? Ou a sua falta foi tão desconforme
gravidade que a torna monstruosa, ou o vosso anterior e proclamado amor se
tinha desvanecido; e, para acreditá-lo, seria necessária uma fé que, sem
milagre a razão nunca me pode fazer acreditar.” (pp. 25-31, O Rei Lear).
Atentando ao referido diálogo, e o contexto onde se insere, ficamos com mais um
bom exemplo da tese que tentei explicar neste Ensaio.
Em suma, Hamlet
demonstra a total consciência da incapacidade, sua e de qualquer outro, de
mudar o que já fora traçado. Não é só a ideia de destino, tal como o concebiam
os gregos, que fica explícita, mas também a segurança de que, tendo cometido um
descontrolo, mesmo que em função do erro de outro (Claudius), a sua punição
viria, mais cedo ou mais tarde. Outro impedimento para o uso do livre-arbítrio,
representando a sua falência, é a condição de Hamlet, um príncipe – que,
segundo a minha leitura, é tudo menos um príncipe vingador -, que, como tal,
não pode agir pensando somente em si mesmo, porquanto dele depende, no final, o
futuro de todo o reino da Dinamarca.
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